O querer de Deus em São Marcelino Champagnat. Esse é o tema do texto escrito pelo Pe. José Rafael Solano Durán, da PUCPR – Campus Londrina, PR. em memória do dia 18/4/99, quando Champagnat foi canonizado.
Confira abaixo na íntegra.
Deus vult “Deus o quer”
A escola da vida nos ensina e nos faz aprender quem somos e como estamos na medida em que somos honestos conosco mesmos. Mentir para Deus é humanamente impossível, mesmo que tentemos nos esconder nas moradas das falsas tautologias ou no fundo de nossas pretensões.
As pessoas que viveram intensamente seu encontro com Cristo, tiveram decididamente que sair da falsidade e da precária ambição.
Champagnat faz parte deste grupo. A sua perseverança em Deus o fez merecedor de uma expressão que o próprio Papa São João Paulo II utilizou na homilia da cerimônia de canonização na praça de São Pedro: “Porventura não nos ardia o coração no peito, quando Ele nos explicava as Escrituras?”.
Tal desejo ardente de Deus, que sentiam os discípulos de Emaús, manifestou-se profundamente em Marcelino Champagnat, um sacerdote cativado pelo amor de Jesus e de Maria. Graças à sua fé inabalável, permaneceu fiel a Cristo, mesmo nos momentos difíceis, num mundo privado do sentido de Deus. Também nós somos chamados a haurir a nossa força na contemplação de Cristo ressuscitado, do jeito de Maria.
Depreende-se daí que “São Marcelino anunciou e viveu o Evangelho com coração totalmente ardente e sensível às necessidades espirituais e educacionais da sua época, sobretudo a ignorância religiosa e as situações de abandono vividas especialmente pela juventude. O seu sentido pastoral continua sendo exemplar para os sacerdotes, chamados a proclamar a Boa Nova, também aos jovens na busca do sentido da vida. Os sacerdotes podem ser educadores da fé ao acompanhar os jovens na caminhada da vida, explicando-lhes as Escrituras. Champagnat é também modelo para os pais e professores, despertando neles a esperança e o amor aos jovens capazes de favorecer uma verdadeira formação humana, moral e espiritual”. (cf. Homilia do Papa João Paulo II – 18 de abril de 1.999).
Anunciar o Evangelho com um coração ardente é fazer o que Deus quer. Impressiona frequentemente, nos dados biográficos de São Marcelino Champagnat, o fato de ter superado as adversidades sempre em sintonia com o querer de Deus, qual luz que emana de todo um conjunto espiritual da cultura cristã francesa da época.
Desde o século XVII, podemos ver a grande corrente que nasce de todo um movimento superando a crise do Racionalismo que impunha todo tipo de tese contra a antropologia cristã. Os conceitos de corpo e alma, espírito e graça, natureza e corrupção, desapareceram. Esse movimento e transformação trouxeram grandes luzes para o mundo ocidental e para a espiritualidade cristã, influenciando fortemente até os dias de hoje a vida e a interioridade dos católicos franceses. A figura central que criou todo este movimento sobre a “ação e o querer de Deus” foi o cardeal Pierre de Berulle.
Conhecer o querer de Deus, além de pretensioso, pode ser uma maneira de inusitadamente “manipular” a Vontade que Ele tem para cada uma das suas criaturas. O cardeal de Berulle teve que enfrentar uma das filosofias que se instaurava no pensamento filosófico com maior força. “O tratado do Homem”, escrito por René Descartes tinha em 1664 influenciado o jovem filósofo Nicolás de Malebranche, que teria ingressado na Congregação do Oratório fundada pelo Cardeal de Berulle. O racionalismo excessivo de Descartes levou Malebranche a dissipar sua fé cristã e optar por uma certa forma de “conformismo” com uma nova maneira de pensar aquilo que os “jansenistas” proclamaram com a doutrina do determinismo.
Dom Berulle sabia muito bem que animar os cristãos em tempos difíceis tornar-se-ia muito mais do que uma ação consequente, o que chamamos, hoje, de evangelização. Dessa forma, iniciou um trabalho intelectual à luz do Aristotelismo clássico e, posteriormente, de um árduo trabalho para dar a conhecer a filosofia de Santo Agostinho de Hipona, chegando a influenciar a formação de diversos santos e santas franceses. Entre eles: Francisco de Sales, Vicente de Paulo, João Eudes. O “Querer de Deus” como foi conhecido ao longo da história teve um ponto de partida na redescoberta do Mistério da Encarnação do Filho de Deus. Como compreender que o Pai quis que o Filho se encarnasse e com isto fosse morto, crucificado e ressuscitasse para nos dar vida em abundância. Esse, o maior querer de Deus! “Tu és Jesus, o servidor escolhido, o único que serve a Deus como Ele quer ser servido”, cf. Meditações de Berulle, no Oratório,1.620.
A cada meditação, Berulle aprofundou o “Querer de Deus” na vida de cada um de nós em detrimento da nossa limitação de a ele corresponder. O tempo passou e a influência do pensamento de Berulle chegou até a pequena aldeia do Rosey, França. Um jovem com dificuldades de aprendizagem escolar e que presenciou a brutalidade de um professor, mais tarde vai acolher o chamado Deus a partir da afirmação: “Deus o quer”, vinda de um sacerdote. O “querer de Deus” pode ser uma nota característica da espiritualidade marista. Tal revelação a jovem de 15 anos é algo impressionante. Assim é o “querer de Deus” a uma alma, sem imposição de condicionamentos próprios e que na adversidade sabe ler e interpretar a realidade.
O conteúdo desta espiritualidade terá o marco da “cardia” espiritual trabalhada por Blaise Pascal que, no confronto com o pensamento de Descartes, propõe uma filosofia mais humana à luz da realidade do coração. É na sensibilidade que emerge do coração que descobrimos um novo método de conhecimento. O coração possui em si mesmo a dimensão própria que a razão não pode ultrapassar. O querer humano não pode superar o querer divino e precisamente, por isso, no encontro dos dois quereres pode surgir a afirmação que mais tarde será o eco dessa experiência: “Senhor, eu quero o Teu querer”.
«O amor não consiste em sentir que se ama; mas em querer amar: quando se quer amar, ama-se… Quanto ao amor que Jesus tem por nós, Ele já o demonstrou à saciedade, porque nós acreditamos nele sem o sentirmos: sentir que O amamos e que Ele nos ama, seria atingir o paraíso; e o paraíso não existe aqui em baixo, salvo em raros momentos e exceções». (Charles de Foucauld, monge do Saara, Carta de 15/07/1916).
A vivência de Champagnat se traduz na excelência da conversão do pequeno irmão de Jesus; Charles de Foucauld. A sua transcendência é tal que, para viver o querer de Deus, não se entrega e não se deixa consumir pelas adversidades, mas se compraz em o viver no “querer de Deus”. Diante dessa convicção, superou a teoria do destino ou da mera predestinação. “Deus o quer”: isso lhe bastou!
Sói acontecer nosso querer não ter nada a ver com o querer de Deus. Daí que nesses tempos de pandemia Covid-19, é fundamental descobrir “quem Deus quer que sejamos e o que deseja que façamos”, cf. apelo do XXII Capítulo Geral do Instituto dos Irmãos Maristas.
Que São Marcelino Champagnat nos ajude a viver a infância espiritual das nossas vidas numa constante disposição de sempre buscar e encontrar o “querer de Deus”.
Pe. José Rafael Solano Durán.
PUCPR – Campus Londrina, PR