Conheça a história missionária de Neiva Hoffelder, leiga marista e fraterna do Movimento Champagnat da Família Marista (MChFM), de Joaçaba (SC).
Tirar as sandálias e “ser” para o outro
Sou Neiva Hoffelder, natural de Joaçaba, Santa Catarina. Desde muito cedo, estive envolvida com afazeres pastorais na comunidade de interior onde morava. Depois, na Paróquia e Diocese de Joaçaba, também participando de algumas assessorias e coordenações no estado e a nível nacional.
No ano de 1985, recebi o convite para participar de um novo projeto da Diocese para a formação de Leigos em Teologia, com o objetivo de ajudar na formação de lideranças posteriormente. Fiz o curso de Teologia no Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, juntamente com os seminaristas. Nós, Leigos, apenas podíamos acompanhar as aulas sem nos pronunciar. Não tínhamos muita liberdade. De qualquer forma, o curso me deu um bom embasamento teórico que depois pude aperfeiçoar com a prática em diversas pastorais e movimentos sociais onde atuei e ajudei a organizar, durante mais de dez anos de dedicação e trabalho na Paróquia e Diocese de Joaçaba. Tempo este em que comecei os primeiros contatos com os Irmãos Maristas no colégio local.
Depois deste tempo, passei a trabalhar com os Irmãos Maristas no Programa Vida Feliz, que estava começando suas atividades em Joaçaba. Posteriormente, atuei no mesmo programa em Pouso Redondo, durante sete anos. Na sequência, fui para Curitiba, em 2005, a convite dos Irmãos para trabalhar no Hospital Santa Casa, que a Província havia assumido a administração. Lá eu comecei a organizar um projeto na área de humanização hospitalar. Acabei atuando nesta área por três anos.
Após este período trabalhando na Santa Casa, fui trabalhar na Edusol – Faculdade de Educação à Distância, também em Curitiba. E embora estivesse fora do Grupo Marista, ainda permanecia ligada à instituição pelo carisma de Champagnat. Passados dois anos de atuação na Faculdade, fui convidada para retornar ao Marista, para participar do projeto de Missão Ad Gentes na Ásia, que se iniciava e necessitava de Leigos para integrar o grupo.
Recebi o convite e em alguns meses organizei minha vida por aqui. Viajei para Filipinas em dezembro de 2009 para estudar inglês e participar de um curso de orientação em cultura asiática e discernimento, até setembro de 2010. Tempo este para aprendizado e adaptações. Posteriormente, fui para a Tailândia, onde foi minha residência por seis anos, embora indo e voltando dos demais países onde atuávamos, até o final de 2016, quando retornei ao Brasil.
Fui chamada a seguir para terras distantes, deixar para trás minhas maiores riquezas: família, amigos, casa, trabalho… (cf Mc 10, 17-31). Esta, com certeza, foi uma das decisões mais difíceis que tomei em toda minha vida. Quando lemos esta passagem bíblica no Evangelho de Marcos, não temos noção do que a prática nos faz sentir!
Meu trabalho era desenvolvido em sete países: Camboja, Tailândia, Índia, Bangladesh, Filipinas, China e Vietnã. Muitas foram as funções desenvolvidas durante os sete anos que por lá trabalhei: coordenar projetos na linha dos direitos das crianças e adolescentes e Pastoral da Juventude. Também como secretária do Distrito de Missão para a Ásia, tesoureira da comunidade e muitas outras coisas que necessitam serem feitas quando se está à disposição em um trabalho de missão. Assim, precisava estar com a mala na estrada o tempo todo.
Para começar, quando chegamos em terras estrangeiras, precisamos ter um profundo respeito pela sua cultura, tradições, religiões e crendices. Mesmo que seja o oposto daquilo que vivemos uma vida inteira em nossas culturas.
Quando saímos em missão, pensamos que vamos ensinar coisas novas aos outros porque levamos uma bagagem muito grande de conhecimentos, formações, diplomas, etc. Mas, ao estarmos em contato com esta realidade, vimos que tudo é diferente e estes diplomas nestas realidades onde estive atuando, não me serviam para nada!
Precisei me despir, tirar “minhas sandálias”, porque o lugar em que estava era sagrado, era a casa do outro e não sou eu que trago a luz, a mensagem, mas preciso recebê-la. – “Deus diz a Moisés em meio da sarça: “Não te aproximes daqui. Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa” (Ex 3, 5). Moisés, ao tirar as sandálias, se conectou com a sua espiritualidade, com o seu chamado, com o propósito eterno para o qual havia nascido.
Precisei me despir, morrer, empobrecer-me de costumes, culturas, ideologias, buscar minha espiritualidade e renascer das cinzas para o diferente. Sentir e atuar a serviço de outra realidade de maioria não cristã. Precisei tirar minhas sandálias da cegueira, da prepotência, da impaciência, do “eu sei como fazer”, para entender e aceitar o outro como nosso parceiro neste crescimento. E não como aquele o qual vim para ajudar, para mostrar um caminho, como se eles não soubessem nada de nada.
Tirar as sandálias é muito mais do que uma atitude de reverência religiosa. As sandálias de Moisés não permitiam que ele tivesse contato com aquele solo cheio da presença de Deus, com aquele chão mágico que traçaria sua vida dali em diante. Uma terra santa é um espaço reservado para a distinção da vida. Sandálias também falam de movimento, de dinâmica. Falam sobre a poeira nos pés dos processos da vida. Tirar as sandálias fala de uma oportunidade nova para reescrever a própria história a partir do contato com essa nova realidade espiritual muito diferente de onde vim.
Tirar as sandálias também nos remete à ideia de renunciar à própria capacidade de ser. Moisés percebe que sem os sapatos, a sua vulnerabilidade e sensibilidade ficam mais evidentes. Fatores imprescindíveis para quem quer estar na presença de Deus com humildade e poder acolher o outro em sua dinâmica de vida com sua cultura, com seus costumes, com seus hábitos…
E isso tudo nos leva a pensar que quando se está descalço é preciso prestar mais atenção onde se pisa. Isso significa que estar na presença de Deus, ou mesmo na presença daqueles onde vamos atuar em missão, requer mais atenção, observação e reflexão. Sem as sandálias podemos, de pés descalços, interagir melhor e desenvolver nossa intimidade com Deus e com os quais estamos ali para acolher e sermos acolhidos.
Fazendo esta reflexão, temos a tentação de querer voltar à nossa realidade, à nossa zona de conforto, voltar às nossas instruções, aos nossos valores, calçar novamente nossas sandálias. Mas já não é mais possível, pois a escolha já estava feita e já me encontrava instalada na casa do outro. Muitas vezes me senti frágil, desesperada. Porém, no momento seguinte, já me sentia bem e tentando ver uma possibilidade de adequar-me neste mundo tão diverso onde me encontrava.
Em um projeto de missão, somos convidados a ser uma significante presença junto aos que se encontram em situações de vulnerabilidade. Viver uma vida simples no meio do povo. Para isso, precisamos realmente nos despir de confortos, de atitudes, de conceitos, de ideologias. É preciso ter a humildade de aceitar nossas limitações e, por que não, rir de nossos erros e gafes cometidas, que não são poucas quando a gente se encontra em terras estranhas!
Depois que voltei da missão, em dezembro de 2016, passei a desenvolver um trabalho junto à Pastoral do Colégio Marista Frei Rogério, em Joaçaba, por dois anos. A seguir, passei a trabalhar como professora em escolas públicas da região, atenta aos cuidados de meus pais. No ano que passou, meu pai faleceu e continuo nos cuidados com minha mãe e lecionando em uma escola pública, atuando com poucas aulas, apenas para não perder o vínculo.
Fazer um trabalho missionário é uma oportunidade única de “sermos” para o outro. Dar o que sou! Às vezes, eu não posso fazer muita coisa pelas pessoas, mas eu tenho a oportunidade de “ser” para o outro, o que na maioria das vezes traz resultados mais significativos do que achar que precisamos enchê-los de “coisas”.
Somos chamados a “sermos” onde atuamos, onde estamos. Chamados a ser a nossa melhor parte, de você ser o melhor filho, o melhor amigo, o melhor companheiro… Somos chamados a sermos missionários onde estivermos. E nossa missão, hoje, mais do que nunca, é pelo poder do Espírito Santo, sermos testemunhas de Jesus Cristo. E mostrar ao mundo que sem Ele não há salvação eterna e nem felicidade terrena.
Neiva Hoffelder