“Há um verso de T. S. Eliot (poeta modernista, dramaturgo e crítico literário – *1888 +1965, USA) que diz que a vida e a morte estão entre aquelas coisas que mais queríamos esquecer. Mas a verdade é que uma e outra possuem uma realidade colada à nossa carne, uma realidade teimosa, resiliente, irremovível, que emerge para além das nossas previsões e se insinua continuamente, contrariando o frágil badulaque dos nossos ocultamentos. É sintomática a expressão “cisne negro”, usada na economia para descrever acontecimentos de baixíssima probabilidade e que provocam, porém, um abalo de altíssimo impacto. Neste nosso século XXI, foi assim com o 11 de Setembro. Tem sido assim com a emergência dos refugiados. É agora assim com o coronavírus.
O controle se tornou um mito das nossas sociedades. Criamos a ilusão de um controle a cem por cento, com uma eficácia que julgamos blindada, à prova de fogo. Reduzimos a abordagem do real a muitos automatismos. E, desse modo, relegamos a vida, na sua complexidade, e a morte, na sua nudez sem palavras, para uma dimensão quase fantasmagórica, onde elas deslizam sim, mas supostamente distantes de nós e no reverso daquilo que no dia a dia vivemos ou esperamos. Isto é, passamos a encarar ambas com a baixíssima probabilidade que a economia atribui aos chamados cisnes negros.
Por isso, o medo que nos assalta quanto à contaminação pelo Covid-19, em parte é, de fato, pelo coronavírus e em parte é porque encontramos aí uma forma para exteriorizar tantos outros medos, racionais e irracionais, que nos habitam, mas aos quais não permitimos expressão. Essa crise viral, como que nos autoriza a dar voz aos nossos medos submersos e a exorcizar, por meio da precipitação uma angústia social extrema, aquela que é a nossa angústia mais profunda e reprimida.
Devemos saber, porém, que o medo é um adversário difícil. E por uma razão: ele promove uma batalha não apenas contra o nosso corpo, mas avança poderoso sobre a nossa alma, e, quando a atinge, não nos dá mais sossego. As nossas sociedades da era da globalização descobrem traumaticamente aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman explicou: que estamos provavelmente mais fortes com tudo aquilo que temos, estamos também mais expostos aos golpes do destino, face aos quais nos tornamos sempre mais vulneráveis, despreparados emocionalmente para administrá-los e, desprovidos de uma visão que lhes dê sentido.
Mas nem sempre é assim. E prova-o uma história destes dias, a de Codogno (Lombardia), a atribulada cidade italiana, onde, no último dia 20 de fevereiro, se detectou o 1º. paciente infectado com o coronavírus no território italiano. Continua a estar na declarada “zona vermelha” e sujeita a medidas drásticas (ninguém pode sair ou entrar em Codogno sem autorização; todos os serviços estão fechados, salvo os essenciais; os transportes públicos estão suspensos…).
Mas, um destes dias, um professor que habita ali enviou uma carta a um jornal nacional onde, a despeito do sofrimento vivido por aquela comunidade, testemunha que também há coisas boas acontecendo: “Ao longo da avenida, quando damos um passeio com os cachorros, encontramos muitas pessoas, mas poucas, agora, usando a máscara, e nos damos conta de que não estamos mais diante de pessoas estranhas, que provavelmente se tornarão amigas. As ciclovias que dão acesso aos parques estão mais frequentadas como nunca as vi. Procuramos todos ajudar e colaborar, desde as compras de supermercado às pequenas necessidades do dia a dia”. Um jornal de uma associação local mostrou um “outdoor”, que dizia o seguinte: “Codogno é uma doença que não nos deixa mais”.”
Dom José Tolentino Mendonça, bibliotecário e arquivista da Santa Sé.